quarta-feira, 4 de julho de 2007

Boi Voador Não Pode

Chico Buarque - Ruy Guerra
1972-1973
Para a peça Calabar de Chico Buarque e Ruy Guerra


Quem foi, quem foi
Que falou no boi voador
Manda prender esse boi
Seja esse boi o que for

O boi ainda dá bode
Qual é a do boi que revoa
Boi realmente não pode
Voar à toa

É fora, é fora, é fora
É fora da lei, é fora do ar
É fora, é fora, é fora
Segura esse boi
Proibido voar

1972/1973 © by Cara Nova Editora Musical Ltda.

Nem que alguns senadores roguem aos céus, nem que a vaca tussa, boi não voa.
Esta marcha carnavalesca, composta por Chico Buarque e Ruy Guerra para a peça Calabar, tem servido de mote a vários protestos no Planalto Central contra os recentes escândalos envolvendo bois, vacas e outros ruminantes.
A peça é ambientada no Nordeste brasileiro, em meados do séc. XVII, no período da ocupação holandesa . Seu nome completo, Calabar, Elogio da Traição. Sua intenção, demonstrar que Domingos Fernandes Calabar, que abandonou as linhas portuguesas para aliar-se aos holandeses e, por isso, é tratado nos livros de história como grande traidor, na verdade, traíra, apenas, os interesses de Portugal, ao passo que os demais personagens traziam em seus ombros a culpa de alguma forma de traição, fosse de ordem conjugal, à sua raça, sua classe, ou ao Brasil.
Na realidade, as razões que levaram Calabar a fazer esta troca são desconhecidas, mas na peça, em sua opinião, o Brasil seria melhor se pudesse ser governado pela Holanda, ou melhor, pela Companhia das Índias Ocidentais, comandada por Maurício de Nassau, uma empresa ao invés de um Império, que promoveria um tratamento mais humano aos negros, a pacificação do país, a liberdade de culto, o desenvolvimento urbano.
Voltando à vaca fria, em uma das cenas, Nassau promete fazer uma ponte ligando Recife à Cidade Maurícia, para celebrar a paz com Portugal, mas um de seus aceclas o alerta de que o povo não tem “muita fé nessa ponte...Dizem que é mais fácil um boi voar...”, ao que o impávido colosso holandês responde: “Pois terão as duas coisas: a Ponte e o Boi! Viva Dom João Quarto, rei de Portugal!”.
Depois, quando finalmente inaugura a ponte, o personagem de Nassau cai no samba com o coro, entoando a marcha “Boi Voador não pode”, exibindo toda sua ginga holandesa e sua familiaridade com as coisas da Terrinha.
A cena encontra respaldo na história.
No dia 28 de fevereiro de 1644, um domingo, Nassau marcou a inauguração da tal ponte – hoje, “Ponte Maurício de Nassau” -, em comemoração à sua partida do Brasil. Para recuperar parte do dinheiro investido, haveria cobrança de ingressos e, para aumentar o público, o Conde holandês desafiou a gravidade e anunciou que faria “um boi voar” durante a inauguração.
E assim foi feito. Para o espetáculo, por ser manso e conhecido, foi escolhido o “boi do Melchior”, um animal de pêlo amarelado, famoso na cidade por entrar nas casas e subir as escadas. O bicho ficou ruminando o dia todo em frente ao Palácio do Governo. Ansioso, o povo vigiava incrédulo, pois sabia que se boi bravo não voava, o do Melchior não sairia do lugar.
Enquanto isso, em manobra digna dos mais astutos senadores brasileiros, Nassau ordenou que se arranjasse um pedaço de couro, de tamanho e cor iguais ao do boi exposto no Palácio, que foi empalhado e inflado como um balão. Amarrado em cordas bem finas, invisíveis ao público que lotava a praia e os barcos, o “boi voador” foi preso por roldanas e controlado por alguns marinheiros, que faziam o bovino fantasma dar piruetas em pleno ar, para delírio dos pagantes e de Maurício de Nassau, que, com a venda de ingressos, recuperou boa parte do dinheiro investido na ponte.
Por causa disso, em Brasília, até hoje, ainda há quem acredite em obras faraônicas e bois voadores. É verdade que eles custam muito mais caro que seus colegas terrestres. Mas boi voador não pode. É fora do ar. É fora da lei. Por isso, o povo canta:
-“Manda prender esse boi, seja esse boi o que for!”

Fonte: GONÇALVES, Fernando Antônio. O Capibaribe e as pontes. Recife: Comunigraf, 1997. 86p.
BUARQUE, Chico e GUERRA, Ruy. Calabar: Elogio da Traição– 20 ed. Com texto revisado e modificado pelos autores. Rio de Janeiro: Civilação Brasileira, 1995.

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