terça-feira, 8 de setembro de 2009

Sampa

Caetano Veloso

Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e Avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e avenida São João

Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destroi coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mas possível novo quilombo de Zumbi
E os Novos Baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa

© Editora Gapa



Quando cruza a Ipiranga e a Avenida São João, meu coração paulistano não sofre grandes abalos, a não ser por uma leve vontade de gastar quinze minutos com um chopp no terraço do Bar Brahma.
Consta, porém, que não é o que se passa com o coração de quem chega por aqui, sem nada entender. E assim se deu com Caetano, em 1965, quando, ao lado da mana Bethânia, viu seu coração vagabundo cruzar palpitante as avenidas que se cruzam e que sua canção ajudou a imortalizar.
Na verdade, a Avenida São João já havia sido imortalizada por cenas de sangue num bar cantadas em Ronda, de Paulo Vanzolini. Aliás, a frase melódica do último verso de Ronda ("cena de sangue num bar na Avenida São João") é reproduzida na introdução e nos versos finais de cada estrofe de Sampa.
O compositor paulista não gostou da citação e, a cada rara entrevista que concede, não perde a oportunidade de espinafrar o baiano, acusando-o de plágio. Costuma dizer que "Sampa é puro marketing".
Ao meu ver, é incompreensível a postura do sempre enfático e coerente Vanzolini, pois ao citar sua música em Sampa, fica claro que Caetano considerou Ronda, que já havia sido gravada por Bethânia, uma canção capaz de traduzir a cidade que ele pretendia homenagear. Trata-se, portanto, também, de uma homenagem a Paulo Vanzolini. Ainda que por tabela.
Mas Ronda é, apenas, a primeira homegeada, já que a canção é repleta de citações e homenagens a São Paulo e seus personagens, a começar por Rita Lee, eleita a mais completa tradução da cidade, e sua banda, Os Mutantes, composta por ela e pelos irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, responsáveis pela face mais rock'n roll do tropicalismo e da música popular brasileira.
O "avesso do avesso do avesso do avesso" é referência direta ao poeta concretista Décio Pignatari e sua luta pelo avesso. O irmãos Haroldo e Augusto de Campos surgem como "poetas de campos e espaços". É a dura poesia concreta nas esquinas de Caetano.
Em 1969, na montagem do Teatro Oficina de “Selva das Cidades”, de Bertold Brecht, a arquiteta e cenógrafa Lina Bo Bardi colocou meia dúzia de troncos de árvores abatidas para a construção do Minhocão num ringue de boxe. No fim da cena, ironicamente chamada de “Área Verde”, os troncos desmoronavam. Caetano ficou impressionado com a obra do Diretor José Celso Martinez Corrêa e, quando compôs Sampa, rendeu esta homenagem ao teatro paulistano, mencionando as "Oficinas de Florestas" da cidade. Hoje, José Celso defende o fim do Minhocão e a instalação de uma imensa área verde no entorno do teatro, localizado no paulistaníssimo bairro do Bixiga. Em retribuição à homenagem de Caetano, tal área será batizada de Oficina de Florestas.
Ainda que em tempos de aquecimento global São Paulo alterne momentos de estiagem e outros de enchentes, houve um tempo em que São Paulo era conhecida como "terra da garoa". Não seria de se estranhar que os "deuses da chuva" citados em Sampa fizessem menção a esta alcunha. O mais provável, porém, é que o termo faça referência ao romance "Deus da Chuva e da Morte", do poeta e compositor paulistano Jorge Mautner, amigo e parceiro de Caetano, muito próximo ao tropicalismo. Referência para a turma da Tropicália, o livro PanAmérica, de José Agrippino de Paula, também abocanhou sua citação.
Aliás, impressiona no Tropicalismo, especialmente na obra de Caetano, a tendência à auto-referência. Será que Narciso acha feio o que não é espelho?
Mas a turma da Bossa Nova também costuma merecer a atenção do bom baiano.
Johnny, volta pro Rio. São Paulo é o túmulo do samba”. Foi o que disse Vinícius de Moraes para Johnny Alf, quando este foi importunado por um cliente da boate La Cave, completamente embriagado. O autor de Sampa assinou embaixo da provocação do poeta. O curioso é que este já havia feito, muito antes dessa polêmica, em 1954, por ocasião do IV centenário da cidade, em parceria com o pernambucano-carioca, cronista, radialista, poeta, boêmio e cardispliscente Antonio Maria, o belo "Dobrado de Amor a São Paulo", cujo verso final - notem a coincidência - faz o sol encontrar o poeta na Avenida São João. Sempre a São João. (veja a letra completa nos comentários a este texto)
Por fim, quando "Novos Baianos passeiam na tua garoa", faz-se referência ao conjunto musical composto por Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Baby Consuelo (hoje, do Brasil), Paulinho Boca de Cantor e Luiz Galvão, sempre apoiados pelos meninos da Cor do Som.
Assim, milhões de novos pernambucanos, paraibanos, cearences, alagoanos, sergipanos e, por que não, baianos, ainda podem curtir São Paulo numa boa. Vêm com outro sonho feliz de cidade. Não há mais garoa, nem lhes sobra muito tempo para o passeio. A força da grana os oprime nas filas, vilas, favelas. Correm entre carros, com suas motocicletas, lutando para não engordarem as mórbidas estatísticas. Aprenderam depressa que o outro nome de Sampa é realidade, mas seguem construindo a cidade para que ela um dia se transforme, quem sabe, em suas Áfricas utópicas, seus mais possíveis novos quilombos de Zumbi.